O TELEFONE SEM FIO E A TRADIÇÃO ORAL

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Este artigo faz parte de meu livro: "Em Defesa da Sola Scriptura"
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Qualquer pessoa que já tenha sido criança um dia já deve ter experimentado a brincadeira do telefone sem fio. Em uma roda de pessoas, o primeiro inventa uma frase e secretamente a informa ao próximo, que repassa a mesma mensagem adiante até chegar ao último. Quando a corrente chega ao último, este diz o que ouviu em voz alta. Quase sempre o resultado final é desastroso e engraçado, e a frase se deforma ao ponto de chegar com um sentido totalmente diferente do original. 

 

No filme infantil “Madagascar 2”, um leão fala ao outro:

 

– Mandem parar! Eles vão nos matar! Tem que ter outro jeito! Passe adiante!

 

Ele repassou a mensagem adiante a alguns macacos e no final a mensagem chegou assim:

 

– Falaram para não puxar. Mate a gente. Não tem jeito. É chocante.

 

Conservadas as devidas proporções, a tradição oral funciona como um telefone sem fio da vida real. A mensagem original pode ser verdadeira, mas quem garante que os demais a transmitiram de forma intacta e inalterável? Após séculos de transmissão oral através de milhares de pessoas, o que mais se espera é que a mensagem original seja alterada, seja para mais, seja para menos. É praticamente impossível que uma comunicação verbal permaneça incorruptível oralmente com o passar dos tempos se não for escrita.

 

É por isso que todos os documentos importantes, como a Lei, a Constituição e os Livros Sagrados existem – porque sabemos que a mera transmissão oral não é suficiente e nem é confiável a médio e longo prazo. Se a mensagem não for passada por escrito, com o tempo ela irá se alterar e tomar uma forma modificada em relação àquilo que foi dito originalmente. Imagine se as leis do Brasil não estivessem escritas, e fossem baseadas meramente naquilo que alguém ouviu dizer de um político e foi transmitido adiante. Rapidamente este país se tornaria um caos maior do que está.

 

Era necessário que a Lei fosse escrita, pois a transmissão oral só é confiável se a transmissão for direta, ou seja, para a pessoa que ouviu diretamente do remetente. Mas se algo é resultado daquilo que uma pessoa ouviu daquilo que outra pessoa ouviu daquilo que outra pessoa ouviu daquilo que outra pessoa ouviu daquilo que outra pessoa ouviu (quase ad infinitum), as chances de a mensagem original não ter sido nem minimamente corrompida é virtualmente nula. Zero. A vida real e o cotidiano nos mostram isso.

 

É por isso que os Pais da Igreja sabiamente decidiram que a doutrina, que é o que há de mais importante na fé, não seria definida por aquilo que “me disseram”, nem por aquilo que “ouvi falar”, mas pelo que “está escrito”. Isso porque a transmissão por escrito é muito mais segura e confiável do que a transmissão oral. Ela garante que a mensagem atravesse os séculos sem ser alterada. Ela assegura a preservação da doutrina. E o único lugar onde obtemos aquilo que os apóstolos originalmente escreveram é nas Escrituras. É por isso que a Bíblia era a única regra de fé para os Pais da Igreja e a única regra de fé para os cristãos de hoje.

 

Com a Lei do Brasil sendo escrita, podemos saber perfeitamente aquilo que os políticos há muito tempo decidiram em Brasília. Com a Constituição Federal sendo escrita, podemos ter certeza dos direitos e deveres de cada cidadão. Com o ensino apostólico sendo escrito, podemos ter certeza dos pontos doutrinários que norteiam a fé cristã. É assim que um conteúdo é preservado através dos séculos. No papel. Na ponta da caneta. Ou, para aquela época, à pena e tinta.

 

 

• A tradição oral é confiável?

 

Mesmo em relação aos costumes que, como vimos no capítulo anterior, algumas igrejas decidiram preservar, já nos primeiros séculos geraram grande divergência entre as diferentes comunidades cristãs. Eusébio nos conta que “estando Aniceto à cabeça da igreja de Roma, Policarpo ainda vivia e veio a Roma para conversar com Aniceto por causa de certa questão acerca do dia da Páscoa”[1]. O que ocorria era que Policarpo dizia ter recebido oralmente de João a instrução para comemorar a Páscoa em um dia, enquanto Aniceto dizia ter recebido oralmente dos presbíteros de Roma para comemorar a Páscoa em outro dia.

 

No final, ninguém conseguiu convencer ninguém e a divergência na questão do dia de observância continuou:

 

“E encontrando-se em Roma o bem-aventurado Policarpo nos tempos de Aniceto, surgiram entre os dois pequenas divergências, mas em seguida estavam em paz, sem que sobre este capítulo se querelassem mutuamente, porque nem Aniceto podia convencer Policarpo a não observar o dia - como sempre o havia observado, com João, discípulo de nosso Senhor, e com os demais apóstolos com quem conviveu -, nem tampouco Policarpo convenceu Aniceto a observá-lo, pois este dizia que devia manter o costume dos presbíteros seus antecessores”[2]

 

É inegável que um dos dois recebeu uma tradição oral corrompida com o tempo. Podemos inferir que é muito mais provável que Policarpo estivesse certo, pois ele disse ter recebido aquele costume diretamente de João, o apóstolo, enquanto Aniceto recebera costume diferente por terceiros. Mesmo assim, o impasse reside exatamente na questão do “me disseram”. Policarpo insistia que “João me disse isso”, e Aniceto respondia que “os presbíteros de Roma me disseram aquilo”.

 

Se João ou os presbíteros de Roma tivessem escrito sobre o dia, toda a questão seria resolvida e o impasse terminaria. Mas como os dois apenas podiam debater em cima do ouvi falar, ninguém conseguiu provar ao outro que estava certo. Faltava uma prova definitiva. Faltava uma prova documental por escrito, o que decidiria a questão. Enquanto tudo era resumido em tradição oral, ninguém se sentia seguro ao ponto de abrir mão de sua opinião para aderir a de outro. Nenhum deles achava a tradição oral do outro confiável. É óbvio que um dos dois havia recebido uma tradição já deformada, corrompida com o tempo.

 

Algo semelhante aconteceu décadas mais tarde, desta vez entre o bispo de Roma, Vitor, e o bispo de Éfeso, Polícrates, no final do século II d.C. Desta vez, a desavença foi maior e houve até ameaças de excomunhão. Samuelle Bacchiocchi resumiu a questão da seguinte maneira:

 

“Por um lado, o Bispo Vitor de Roma (189-99 A.D.) liderou o costume do Domingo de Páscoa (isto é, a celebração da festa no domingo geralmente seguinte à data da páscoa judaica) e ameaçou excomungar as comunidades cristãs recalcitrantes da província da Ásia que se recusavam a seguir suas instruções. Por outro lado, Polícrates, bispo de Éfeso e representante das igrejas da Ásia, fortemente advogou a data tradicional da páscoa judaica de 14 de Nisã, comumente chamada ‘Páscoa Quartodecimana’. Polícrates, reivindicando possuir a genuína tradição apostólica transmitida à ele pelos apóstolos Filipe e João, recusou amedrontar-se em sua missão às ameaças de Vitor de Roma”[3]

 

Irineu interveio como mediador e, nas palavras de Eusébio, “também restam as expressões que empregaram para pressionar com grande severidade a Vitor. Entre eles também estava Irineu”[4]. Hans van Campenhausen definiu a questão dizendo:

 

“Quando Vítor de Roma aceitou ser persuadido a romper relações eclesiásticas com as igrejas da Ásia Menor, por causa das diferenças duradouras sobre a festa da Páscoa, Irineu lhe escreveu uma vigorosa carta na qual condenava esta ação ditatorial de uma maneira conveniente”[5]

 

Tentando impor a sua decisão, o bispo romano quis excomungar os bispos de todas as igrejas que eram contrárias a ele. Mas Eusébio nos conta como estes bispos se opuseram a esta decisão:

 

“Ante isto, Victor, que presidia a igreja de Roma, tentou separar em massa da união comum todas as comunidades da Ásia e as igrejas limítrofes, alegando que eram heterodoxas, e publicou uma condenação por meio de cartas proclamando que todos os irmãos daquela região, sem exceção, estavam excomungados. Mas esta medida não agradou a todos os bispos, que por sua parte exorta­vam-no a ter em conta a paz e a união e a caridade para com o próximo. Conservam-se inclusive as palavras destes, que repreendem Victor com bastante energia[6]

 

Se discussões como essa aconteciam por causa de meros costumes, em algo de pouca significância, imagine o problema que seria caso as doutrinas, que são o que há de mais importante na fé, fossem decididas com base no ouvi dizer, na tradição oral. Seria um inferno em plena terra e todos estariam em pé de guerra, cada qual defendendo que a sua própria tradição é a certa. Felizmente, eles decidiram seguir as doutrinas escritas, para evitar este tipo de confusão. Para eles, apenas costumes poderiam ser observados com base em tradição oral, porque estes costumes, mesmo se estiverem errados, não corrompem as doutrinas centrais da fé. Não atingem um dedo da ortodoxia. Não representam ameaça àquilo que há de importante.

  

 

• As divergências entre os Pais da Igreja

 

Os romanistas costumam citar as desavenças doutrinárias entre as igrejas evangélicas como uma decorrência da adoção da Sola Scriptura. Eles dizem que a Sola Scriptura faz multiplicar as doutrinas porque cada pessoa interpreta a Bíblia de forma particular, e se seguissem a tradição romana isso não aconteceria. Se isso é verdade, isso prova com ainda mais força que os Pais da Igreja criam mesmo na Sola Scriptura. Isso porque eles tiveram tantas divergências entre si quanto os evangélicos têm hoje. Citaremos algumas delas.

 

 

• Discórdia 1: Gálatas 2:11-14.

 

Agostinho discutiu com Jerônimo sobre Gálatas 2:11-14, porque Jerônimo deu razão a Pedro naquela ocasião e cria que Paulo havia sido dissimulado, enquanto Agostinho seguia a opinião de que Paulo estava com a razão e Pedro estava errado. Jerônimo dizia:

 

“Oh, Paulo! Também a propósito deste fato te pergunto: 'Por que é que rapaste a cabeça? Por que é que fizeste a procissão descalço segundo o rito judaico? Por que é que ofereceste sacrifícios e por ti foram imoladas vítimas prescritas pela Lei mosaica?' Certamente responderás: 'Para que não se escandalizassem os Judeus convertidos'. Te fingiste pois judeu para salvar os judeus. E esta dissimulação te foi ensinada por Tiago e pelos outros seniores: mas não conseguiste evitá-la (...) Vimos que Pedro e Paulo fingiram tanto um como outro observar os preceitos da Lei por medo dos judeus. Com que cara, então, com que moral pôde Paulo condenar o outro por uma falta cometida também por ele mesmo?'”[7]

 

Contra isso, Agostinho escreveu repreendendo Jerônimo, dizendo que isso ia contra o que as Escrituras dizem, e que nada na Bíblia poderia ser falso em si mesmo:

 

“Em sua exposição da Epístola de Paulo aos Gálatas eu descobri uma coisa que me preocupou muito. Pois se declarações falsas em si mesmas foram admitidas na Sagrada Escritura, que autoridade restará para nós?”[8]

 

 

• Discórdia 2: Livros apócrifos.

 

Os livros apócrifos foram rejeitados por praticamente todos os Pais da Igreja até a época de Agostinho[9]. Jerônimo, por exemplo, dizia:

 

"E assim, da mesma maneira pela qual a Igreja lê Judite, Tobias e Macabeus (no culto público) mas não os recebe entre as Escrituras canônicas, assim também sejam estes dois livros [Sabedoria e Eclesiástico] úteis para a edificação do povo, mas não para estabelecer as doutrinas da Igreja"[10]

 

Mas Agostinho cria na canonicidade dos apócrifos por causa dos relatos dos martírios:

 

“Desde este tempo, quando o templo foi reconstruído, até o tempo de Aristóbulo, os judeus não tiveram reis, mas príncipes, e cálculo de suas datas não é encontrado nas Sagradas Escrituras que são chamadas canônicas, mas em outros, entre os quais estão também os livros dos Macabeus. Estes são tidos como canônicos, não pelos judeus, mas pela Igreja, por conta dos sofrimentos extremos e maravilhosos de certos mártires, que, antes de Cristo vir em carne, sustentaram a lei de Deus até a morte, e suportaram males mais graves e horríveis”[11]

 

  

• Discórdia 3: Milênio.

 

Papias, Irineu, Tertuliano, Justino e Lactâncio – todos do segundo século – criam na existência de um período milenar literal como descrito no Apocalipse, enquanto que alguns Pais de época posterior, como Eusébio e Agostinho, passaram a interpretar alegoricamente. A crença de Papias e a descrença de Eusébio ficam nítidas quando este diz:

 

“Entre essas coisas, ele [Papias] diz que haverá mil anos após a ressurreição dos mortos e que então o reino de Cristo se estabelecerá fisicamente nesta nossa terra. Suponho que tenha essa opinião por ter interpretado mal as explicações dos apóstolos e que ele não compreendeu as coisas que eles diziam de maneira figurada e simbólica”[12]

 

 

• Discórdia 4: Virgindade perpétua de Maria.

 

Jerônimo, Epifânio e Agostinho defendiam a virgindade perpétua de Maria. Eusébio[13], Vitorino e Tertuliano[14][15] a negavam. Clemente de Alexandria, que cria na virgindade perpétua de Maria, resume a situação da época ao dizer que, em seus dias (finais do século II), a maioria dos cristãos cria que Maria não foi virgem perpetuamente:

 

“Mas, como parece, muitos mesmo até ao nosso próprio tempo consideram Maria, por causa do nascimento da sua criança, como tendo estado na condição puerperal, embora não o tenha estado. Pois alguns dizem que, depois de parir, se a achou ainda virgem quando foi examinada”[16]

  

 

• Discórdia 5: Imaculada conceição de Maria.

 

Embora alguns Pais tenham crido que Maria nasceu sem pecado porque era cheia de graça, a maioria cria que Maria nasceu sob o pecado original. Orígenes disse que “era necessário que ela pecasse assim em certa medida, para que também ela fosse remida por Cristo"[17]. Tertuliano afirmou que "somente Deus é sem pecado, e o único homem sem pecado é Cristo, desde que Cristo é também Deus”[18]. João Crisóstomo disse que Jesus “se preocupava com a salvação da alma dela"[19], e Ambrósio de Milão disse que “de todos os homens nascidos de mulher, o Santíssimo Senhor Jesus foi o único que não experimentou o contato terrestre por causa da novidade de seu nascimento imaculado"[20].

 

Ele também exclamou:

 

“Jesus é o único que os laços do pecado não prenderam; nenhuma criatura concebida pelo acoplamento do homem e da mulher, foi isenta do pecado original; só foi isento dele Aquele que foi concebido, sem o acoplamento, de uma virgem por obra do Espírito Santo”[21]

 

Eusébio também declarou que “ninguém está isento da mancha do pecado original, nem a mãe do Redentor do mundo. Só Jesus está isento da lei do pecado, apesar de ter nascido de uma mulher sujeita ao pecado”[22]. Até bispos de Roma afirmaram que Maria pecou. Leão I disse que "assim como nosso Senhor não encontrou a ninguém isento do pecado, assim veio para o resgate de todos"[23]. Ele também disse que “apenas o Senhor Jesus Cristo, entre os filhos dos homens, nasceu imaculado, porque apenas Ele foi concebido sem a associação e a concupiscência da carne"[24].

 

Na mesma linha, Gelásio I declarou que “nada do que estes nossos primeiros pais produziram por sua semente foi isento do contágio deste mal, que ele contraíram pela prevaricação”[25], e Gregório Magno disse que “apenas ele [Cristo] nasceu santo, para que Ele pudesse superar a condição da natureza corrupta, não sendo concebido segundo a maneira dos homens"[26].

 

 

• Discórdia 6: Destino da alma após a morte.

 

Os primeiros Pais eram mortalistas (criam na morte da alma entre a morte e a ressurreição). Policarpo disse que a alma ressuscita junto com o corpo[27] e Justino alertou que “se alguém disser que, no ato de morrer, as suas almas são elevadas ao Céu, não os considereis cristãos”[28]; ele também alegou que “ambas as almas [do justo e do ímpio] morrem”[29] e que “sempre que a alma tem de deixar de existir, o homem não existe mais, o espírito da vida é removido, e não há mais alma, mas ele vai voltar para o lugar de onde foi feito”[30].

 

Arnóbio rejeitou aqueles “pensadores recentes e fanáticos pela excessiva estima de si mesmos, que pensam que as almas são imortais”[31]; Teófilo cria na ressurreição da alma[32] e Taciano acreditava na desintegração total do ser humano entre a morte e a ressurreição, sustentando que “existi e que pela morte deixarei de ser e outra vez desaparecerei da vista de todos, e novamente voltarei a ser como não tendo antes existido”[33].

 

Os Pais de épocas posteriores passaram a crer na imortalidade da alma, mas com ressalvas. Irineu dizia que as almas dos cristãos na morte não sobem logo ao Céu porque só irão para o Céu na ressurreição corporal[34], enquanto Tertuliano afirmava que somente os cristãos mártires que iriam para o Céu logo após a morte[35]. Foi somente a partir da época de Agostinho que a crença de que as almas dos justos vão ao Céu após a morte começou a ganhar força. Não havia consenso quanto a isso.

 

 

• Discórdia 7: Universalismo.

 

Alguns Pais eram universalistas, ou seja, criam que no final todos serão salvos, independentemente se foram cristãos ou não, se foram justos ou ímpios. Orígenes e Gregório de Nissa defendiam que no fim serão salvos todos os homens e os demônios, enquanto Agostinho rejeitava tal doutrina[36]. Comentando o texto de Filipenses 2:10, Gregório de Nissa disse:

 

“A meu parecer o apóstolo divino, tendo presente na sua profunda sabedoria estas três condições que se notam nas almas, quis aludir ao acordo no bem que um dia se estabelecerá entre todas as naturezas racionais (...) Com estas suas palavras ele alude ao fato que, uma vez destruído o mal depois de um longuíssimo período de tempo, não ficará mais do que o bem. Também estas naturezas, de fato, reconhecerão o senhorio de Cristo”[37]

 

  

• Discórdia 8: Aniquilacionismo.

 

O aniquilacionismo prevaleceu sobre a crença em um tormento eterno nos primeiros séculos, como o próprio Agostinho reconheceu, dizendo que “existem muitíssimos que apesar de não negarem as Santas Escrituras não acreditam em tormentos eternos”[38].

 

A palavra “muitíssimos”, no original, é imo quam plurimi, que também pode ser traduzida como “maioria”. Portanto, Agostinho reconhece que em seus dias a maioria dos cristãos não cria em um tormento eterno. Basílio, que foi contemporâneo de Agostinho, também reconheceu isso. Ele disse que “grande parte dos homens afirma que haverá um fim à punição daqueles que foram punidos”[39].

 

 

• Discórdia 9: Imagens.

 

Os primeiros Pais da Igreja foram contra o uso de imagens no culto cristão. Irineu afirmou que tal prática era dos pagãos, os gnósticos:

 

“Denominam-se gnósticos e têm algumas imagens pintadas, outras também fabricadas com outro material, dizendo que são a imagem de Cristo feita por Pilatos no tempo em que Jesus estava com os homens. E as coroam e as expõem com as imagens dos filósofos do mundo, a saber, com a imagem de Pitágoras, de Platão, de Aristóteles e dos outros, e reservam a elas todas as outras honras, precisamente como os pagãos[40]

 

Eusébio também confirma que o uso de imagens era vigente entre os pagãos:

 

“E não é estranho que tenham feito isto os pagãos de outro tempo que receberam algum benefício de nosso Salvador, quando perguntamos por que se conservam pintadas em quadros as imagens de seus apóstolos Paulo e Pedro, e inclusive do próprio Cristo, coisa natural, pois os antigos tinham por costume honrá-los deste modo, simplesmente, como salvadores, segundo o uso pagão vigente entre eles[41]

 

Tertuliano era outro que rejeitava o uso de imagens, e disse que isso era do diabo:

 

“O diabo introduziu no mundo os artistas que fazem as estátuas e as imagens e todas as outras representações (...) Dizendo Deus: ‘tu não farás alguma semelhança das coisas que estão no céu nem na terra nem no mar’, proibiu aos seus servos em todo o mundo de se abandonarem ao exercício dessas artes”[42]

 

Lactâncio disse que onde há imagem não há religião:

 

“Portanto não há dúvida que onde quer que haja uma estátua ou uma imagem não há religião. Porque se a religião consiste de coisas divinas, e se não há nada de divino exceto em coisas que são celestes, as imagens carecem de religião, dado que não pode haver nada de celeste naquilo que é feito de terra”[43]

 

Epifânio era tão fortemente contra que chegou a lacerar um véu com uma imagem:

 

“Eu encontrei um véu suspenso nas portas desta mesma igreja, o qual estava colorido e pintado, ele tinha uma imagem, a imagem de Cristo pode ser ou de algum santo; eu não recordo mais quem ela representava. Eu pois tendo visto este sacrilégio; que numa igreja de Cristo, contra a autoridade das Escrituras, a imagem de um homem estava suspensa, lacerei aquele véu”[44]

 

Não obstante, João Damasceno, já no século VII d.C, era fortemente a favor das imagens, e influenciou a decisão do segundo Concílio de Niceia (787), que se posicionou a favor, ainda que alguns anos antes um outro concílio, em Constantinopla, tenha condenado expressamente o culto às imagens que figuravam Cristo, Maria e os santos, dizendo:

 

“Nós podemos além disso demonstrar o nosso sentimento por meio das Santas Escrituras e dos Pais. De fato lê-se na Escritura: ‘Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade’; e: ‘Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na terra’; também Deus falou aos israelitas do meio do fogo e do cume da montanha e não lhes mostrou nenhuma imagem; numa outra passagem: ‘Mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível.. e adoraram e serviram a criatura em vez do Criador’ (...) Nós, portanto, nos apoiando na santa Escritura e nos Pais, declaramos unanimemente, em nome da santa Trindade, que nós condenamos, rejeitamos e afastamos com todas as nossas forças da Igreja cristã qualquer imagem de qualquer maneira que seja feita com a arte da pintura”

 

É digno de nota que o concílio expressou não apenas o ponto de vista das Escrituras, mas também o parecer dos Pais, confirmando que a maioria dos Pais da Igreja foram contra o culto às imagens.

 

 

• Discórdia 10: Versões da Bíblia.

 

A versão do Antigo Testamento mais usada pelos Pais da Igreja era a Septuaginta, em grego. Jerônimo decidiu traduzir para o latim, criando a conhecida Vulgata Latina. Agostinho se posicionou contrário à Vulgata de Jerônimo e lhe disse:

 

“Quantos depois pensam que eu tenha ciúmes dos teus úteis trabalhos, percebam uma boa vez (se contudo for possível) por que não quero que seja lida nas igrejas a tua versão do hebraico: não quero que ela seja introduzida como uma novidade contra a autoridade dos Setenta e se venham de tal modo a perturbar com um grande escândalo os fiéis cristãos”[45]

 

Não obstante à oposição de Agostinho, a Vulgata foi usada por outros Pais e aceita de modo oficial pela Igreja Romana no Concílio de Trento[46].

 

 

• Discórdia 11: O dia da celebração da Páscoa.

 

Como vimos anteriormente, Policarpo entrou em conflito com Aniceto por causa do dia da celebração da Páscoa[47], o mesmo que se repetiria mais tarde entre Polícrates e Vitor, precisando da intervenção de Irineu para apaziguar os ânimos, já que se falava até de excomunhão por conta desta polêmica[48].

 

 

• Discórdia 12: O rebatismo dos hereges.

 

Cipriano era fortemente a favor do rebatismo dos hereges, e entrou em conflito com o bispo romano da época, Estêvão. Ele disse que “nós batizamos aqueles que provêm de uma água adúltera e profana, porque estes devem ser lavados e santificados pela água verdadeira que doa a salvação”[49]. Tempos mais tarde, Agostinho rejeitou a posição de Cipriano e disse que “rebatizar um herético que tenha recebido aquele caráter de santidade que foi transmitido pela doutrina cristã é, sem dúvida, uma culpa”[50]. Para ele, “Cipriano emitiu opiniões que não são encontradas nas Escrituras canônicas, mas em seus próprios escritos, e em um Concílio”[51].

  

 

• Discórdia 13: Batismo infantil.

 

Tertuliano era contra o batismo infantil, e disse que as crianças devem esperar até a idade adulta para receberem o batismo:

 

“Por isso, embora tendo em conta as situações, as disposições e também a idade de cada pessoa, adiar o batismo apresenta maior utilidade, sobretudo quando tem a ver com crianças. Se não há casos graves, que necessidade há de também pôr os padrinhos em risco de não poder manter, em caso de morte, as promessas que fizeram ou de ficarem frustrados se aquelas crianças crescem depois com más tendências? Certamente o Senhor disse: Não impeçais as crianças de virem a mim (Mt 19,14). Venham, mas quando forem maiores e poderem ser instruídas, venham quando poderem saber onde vão; tornem-se cristãs, quando forem capazes de conhecer Cristo! Por que é que crianças inocentes deveriam ter tanta pressa de receber o perdão dos pecados? Para os negócios da nossa vida ordinária no mundo nos comportamos com bastante prudência e cuidado; a uma criança ninguém confia a administração de bens terrenos, por que então lhe confiar a responsabilidade de bens divinos? Aprendam também elas a pedir a salvação para que se veja com clareza que tu a salvação a dás a quem a pede!”[52]

 

Por outro lado, Hipólito era a favor, e afirmou:

 

“Ao cantar do galo, se começará a orar sobre a água. Far-se-á assim a não ser que exista uma necessidade. Mas se houver necessidade permanente e urgente, se utilizará a água que se encontre. Desvestir-se-ão, e si batizarão as crianças em primeiro lugar. Todos os que puderem falar por si mesmos, falarão. Enquanto aos que não podem, seus pais falarão por eles ou alguém de sua família. Se batizará em seguida os homens e finalmente as mulheres”[53]

  

 

• Discórdia 14: Divórcio.

 

Tertuliano, Lactâncio, Teodoreto e Cirilo de Alexandria defendiam que o divórcio era permitido em casos de adultério, ao passo em que Jerônimo, Clemente de Alexandria, Orígenes e Agostinho eram contra mesmo nestes casos[54]. Tertuliano e Atenágoras iam além e diziam que até os viúvos que se casavam de novo cometiam adultério. Este disse que “quem se separa de sua primeira mulher, mesmo quando morreu, é adúltero dissimulado, transgredindo a mão de Deus, pois no princípio Deus formou um só homem e uma só mulher, desfazendo a comunidade da carne com a carne, segundo a unidade para a união dos sexo”[55].

 

 

• Discórdia 15: Uso da força.

 

Lactâncio era contra o uso da força para converter os incrédulos. Ele disse que “é necessário defender a religião não matando mas morrendo por ela, não com a crueldade mas com a paciência, não com o delito, mas com a fé (...) porque se tu queres defender a religião com o sangue, com os tormentos e com a dor, isso não será defendê-la, mas emporcalhá-la e ultrajá-la”[56]. Agostinho, por outro lado, foi a favor da força para converter os donatistas, e disse:

 

“Primeiramente era do parecer que ninguém devia ser conduzido pela força à unidade de Cristo, mas que se devia agir só com a palavra, combater com a discussão, convencer com a razão, para evitar ter entre nós como fingidos católicos aqueles que tínhamos já conhecido entre nós como críticos declarados. Esta minha opinião, porém, teve que ceder perante a daqueles que me contradiziam já não em palavras, mas que me traziam as provas dos fatos. Antes de tudo se me aduzia em contrário o exemplo da minha cidade natal que, enquanto primeiro pertencia inteiramente ao partido donatista, tinha-se depois convertido à Igreja católica por medo das sanções imperiais”[57]

 

 

• Discórdia 16: Juramentos.

 

Agostinho era a favor de que se fizessem juramentos, afirmando:

 

“O Senhor, pois, não mandou não jurar, como coisa completamente ilícita, mas, para que não apeteça a alguém jurar, como se fosse por si mesmo bom, e para que ninguém jure facilmente sem necessidade, e caia em perjúrio pelo hábito de jurar. Não devemos olhar o juramento em si mesmo como um bem, mas como uma coisa que se pode usar por necessidade e da qual nos devemos servir somente quando se vê que os homens são relutantes a crer o que lhes é útil crer, se não for confirmado pelo juramento”[58]

 

João Crisóstomo, por outro lado, ensinava que o juramento é mau em si mesmo:

 

“Mas como, – vós direis, – que mal há em jurar? Certamente que é mau jurar, desde que reina a perfeição evangélica; mas antes não o era”[59]

 

 

• Discórdia 17: Origem da alma.

 

Orígenes cria na pré-existência das almas, e com efeito afirmou:

 

“Então, depois de ter examinado mais a fundo as Escrituras a respeito de Jacó e Esaù, achamos que não depende da injustiça de Deus que antes de ter nascido e de ter feito algum bem ou mal – isto é nesta vida –, tenha sido dito que o maior serviria o menor; e achamos que não é injusto que no ventre da mãe Jacó tenha suplantado seu irmão (...) se crermos que pelos méritos da vida anterior com razão ele tenha sido amado por Deus por merecer ser preferido ao irmão”[60]

 

Tal doutrina foi rejeitava pela grande maioria dos demais Pais. Tertuliano, propondo outra tese, sugeriu o traducianismo materialista, que ensina que as almas são transfundidas aos filhos pelos genitores mediante a semente material. Ele declarou:

 

“De que modo pois foi concebido o ser vivo? Tendo-se formado simultaneamente a substância tanto do corpo como da alma ou formando-se primeiro uma destas duas? Nós afirmamos que ambas estas substâncias são concebidas, feitas e acabadas no mesmo momento, como no mesmo momento são também feitas nascer, e dizemos também que não há algum momento no ato da concepção em que venha estabelecida uma ordem de precedência (...) A alma inseminada no útero junto com a carne recebe junto com ela também o sexo”[61]

 

Agostinho cria no traducianismo espiritualista, que se diferenciava do materialista de Tertuliano no sentido de que, para ele, a alma do filho era derivada da alma do pai. Ele disse que “como um facho acende um outro sem que a chama comunicante nada perca da sua luz, assim a alma se transmite do pai para o filho”[62]. Tanto a teoria de Orígenes, como também a de Tertuliano e a de Agostinho, que já eram diferentes entre si, são combatidas pela Igreja Romana nos dias de hoje.

 

  

• Discórdia 18: Determinismo.

 

Agostinho era determinista, e consequentemente cria que tudo o que ocorre neste fundo foi previamente determinado por Deus – inclusive o pecado. Daí vem sua conclusão de que “que os maus pequem, isso eles fazem por natureza; porém que ao pecarem, ou façam isto ou aquilo, isso provém do poder de Deus, que divide as trevas conforme lhe apraz”[63]. Isso vai na contramão do ensino da maioria dos Pais, que cria no livre-arbítrio libertário de um mundo indeterminista. Clemente de Alexandria, por exemplo, afirmou:

 

“Não devemos, portanto, pensar que Deus ativamente produz aflições (longe esteja de nós pensar uma coisa dessas!); mas devemos ser persuadidos de que ele não impede os que as causam, mas anula para o bem os crimes dos seus inimigos”[64]

 

 

• Discórdia 19: Celibato.

 

Clemente de Alexandria era contra qualquer forma de celibato obrigatório do clero e disse que os apóstolos eram casados:

 

“Ou também vão desaprovar os apóstolos? Porque Pedro Felipe criaram filhos (...) conta-se, pois, que o bem-aventurado Pedro, quando viu que sua própria mulher era conduzida ao suplício, alegrou-se por seu chamamento e seu retorno para casa, e gritou forte para animá-la e consolá-la, chamando-a por seu nome e dizendo: ‘Oh, tu, lembra-te do Senhor!’”[65]

 

Mas o Concílio de Niceia decretou que “todos os membros do clero estão proibidos de morar com qualquer mulher, com exceção da mãe, irmã ou tia”[66].

 

 

• Discórdia 20: Eleição.

 

Agostinho cria em uma predestinação “calvinista”, à parte da presciência divina. Ele disse que “esta é a imutável verdade da predestinação da graça. Pois, o que quis dizer o apóstolo: Nele ele nos escolheu antes da fundação do mundo? (Ef 1:4). Com efeito, se de fato está escrito que Deus soube de antemão os que haveriam de crer, e não que os haveria de fazer que cressem, o Filho fala contra esta presciência ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi”[67].

 

Este ensino foi contraposto pela maior parte dos outros Pais. Justino, por exemplo, afirmou:

 

“Deus, no desejo de que homens e anjos seguissem sua vontade, resolveu criá-los livres para praticar a retidão. Se a Palavra de Deus prediz que alguns anjos e homens certamente serão punidos, isso é porque ela sabia de antemão que eles seriam imutavelmente ímpios, mas não porque Deus os criou assim. De forma que quem quiser, arrependendo-se, pode obter misericórdia”[68]

 

Hilário, por sua vez, declara que “a eleição não é questão de juízo acidental, mas é uma distinção feita por intermédio de uma seleção baseada no mérito. Feliz, então, aquele que elege a Deus: bendito em razão dele ser digno da eleição"[69], e Teodoreto amplia:

 

“Aqueles cuja intenção Deus previu, Ele predestinou desde o princípio. Aqueles que predestinou, Ele chamou e justificou pelo batismo. Os que foram justificados, Ele glorificou, chamando-os filhos (...) Que ninguém diga que a presciência de Deus foi a causa unilateral dessas coisas. Não foi sua presciência que justificou as pessoas, mas Deus sabia o que aconteceria, porque Ele é Deus”[70]

 

 

• Considerações

 

Mostramos vários testemunhos de Pais da Igreja que mantinham opiniões divergentes em questões de todos os âmbitos, desde doutrinas até costumes. Fiz questão de deixar de lado os chamados “hereges” (como Marcião ou Ário), o que aumentaria ainda mais a lista de discórdias, para passar apenas aqueles que a Igreja de Roma considera “Pais da Igreja” – muitos destes inclusive foram mais tarde canonizados pela Igreja Romana ou declarados “doutores” da Igreja.

 

Mesmo sendo figuras tão importantes nos primeiros séculos, e reconhecidamente dentro da Igreja cristã, eles mantinham várias divergências em praticamente todos os assuntos em que os evangélicos também discutem entre si, e em muitos outros. Se o argumento católico-romano de que é a crença na Sola Scriptura que leva à diversidade de opiniões e doutrinas divergentes, então obviamente os Pais da Igreja devem ser reconhecidos como os maiores Sola Scripturistas que este mundo já conheceu.

 

Se realmente houvesse um magistério em Roma interpretando a Bíblia infalivelmente, é claro que não existira qualquer uma das vinte discussões mostradas no capítulo, dentre muitas outras que existiram na Igreja da época. Ninguém iria discutir com ninguém, e qualquer divergência seria facilmente solucionada levando a questão para o infalível magistério romano decidir o ponto de fé.

 

Contudo, nunca vemos um ponto doutrinário sendo levado a um magistério romano decidir a questão. Todos eles mantiveram suas opiniões até o fim da vida, mesmo sabendo que estavam em conflito com a opinião de outros Pais. Se realmente existia um magistério romano interpretando a Bíblia infalivelmente, ele era tão invisível e tão pouco notório que ninguém fazia a mínima questão de levar as divergências doutrinárias a ele. Era um magistério tão poderoso que era dispensado por todos os Pais da Igreja. Eles preferiam continuar crendo da forma que criam do que resolver a questão levando-a a Roma.

 

Além disso, se realmente existia alguma tradição oral completamente preservada com todos os pontos intactos da fé que havia sido originalmente dita pelos apóstolos, por que nenhum Pai recorria à autoridade desta tradição para resolver suas intrigas doutrinárias uns com os outros? Por que Agostinho não disse a Jerônimo que a tradição mostra que a interpretação dele é a certa? Por que ele não recorreu a uma suposta tradição oral para reforçar seu argumento de que a sua visão de determinismo, eleição e predestinação era a certa, e que os demais estavam errados por ignorar essa tradição?

 

Por que Orígenes, Tertuliano, Agostinho ou qualquer outro Pai que se esforçou em definir a origem da alma com conclusões sempre divergentes não evocou a autoridade da tradição não-escrita para liquidar a questão de uma vez e mostrar que a sua interpretação era a verdadeira? Por que nenhum dos vários Pais que discutiram sobre o tema do divórcio não lembrou o que foi “preservado” pela tradição oral para decidir a questão sem deixar brechas para discordâncias?

 

Por que Jerônimo se esforçou em provar somente pela Bíblia que Maria foi sempre virgem, ao invés de recordar a Helvídio a existência da tradição oral? Por que os Pais que eram contra a virgindade perpétua da mãe de Jesus não lembravam o que a tradição dizia e mudavam de opinião? Por que nenhum Pai que era contra ou a favor da imortalidade da alma afirmou que chegou a esta crença através de uma tradição não-escrita? Por que a dúvida sobre o milênio, se havia mesmo uma tradição intacta e incorruptível que dizia com exatidão se ele existia ou não?

 

Por que Epifânio não sabia o que aconteceu nos últimos dias de Maria (em função de que a Bíblia silenciava a respeito), se a Igreja Romana diz ter certeza de que a tradição oral comprova a assunção dela? Qual tradição oral era essa, que era desconhecida por um bispo do século IV e conhecida por um papa do século XX?

 

Como confiar em uma tradição oral que não preserva nem a autoria do livro de Hebreus?[71] Por que seus destinatários, que sabiam quem era o autor, não transmitiram adiante este conhecimento? Se transmitiram, por que não foi preservado pela tradição? Se algo tão simples como o nome de uma pessoa não pôde ter sido preservado oralmente, como é que podemos ter certeza de que doutrinas e pensamentos complexos o foram?

 

Todas estas questões – e muitas outras que poderíamos levantar – só podem ser satisfatoriamente respondidas se a resposta for que os Pais da Igreja desconheciam a existência de uma tradição oral incorrupta que fundamentava doutrinas, e que eles criam somente na Bíblia como fonte de doutrina. Isso explica por que havia tantas divergências e por que ninguém definia uma questão polêmica com a “autoridade” da tradição: todos interpretavam livremente a Bíblia, e, consequentemente, podiam chegar a interpretações diferentes, e a posições doutrinárias distintas – exatamente o mesmo que os católicos tanto contestam nos evangélicos.

 

O exame detido dos escritos dos Pais nos mostra que eles ignoravam completamente a existência de qualquer tradição oral incorruptível que tivesse a mesma força para fundamentar doutrinas que a Escritura tinha, e que em todas as questões doutrinárias eles recorriam somente à Escritura para resolver a questão, independentemente de qual doutrina fosse.

 

Outro problema com o uso da tradição oral pelos apologistas romanos é que os irmãos ortodoxos também se sustentam em alegadas tradições para fundamentar suas doutrinas, que em alguns casos também não são bíblicas, mas muitas tradições cridas por eles são completamente diferentes das tradições cridas por Roma. Vejamos mais uma vez algumas diferenças entre a Igreja Romana e a Ortodoxa:

 

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Vamos por um momento supor que exista mesmo uma tradição oral incorruptível e inalterável que atravessou os séculos e foi admitida como regra de fé paralela às Escrituras. Vamos também supor que um evangélico esteja desesperadamente disposto a seguir essa tão importante tradição oral. Em primeiro lugar, qual tradição ele deveria seguir? A tradição da Igreja Romana, a da Igreja Ortodoxa ou um misto das duas?

 

Mais uma vez, ressaltamos que ambas alegam ter dois mil anos e remeter aos apóstolos por sucessão. Ambas também afirmam guardar como um depósito a “tradição apostólica”. Porém, as tradições de uma são totalmente diferentes das tradições da outra. A tradição romana diz que o purgatório existe; a tradição da ortodoxa diz que não existe. A tradição romana diz que a comunhão aos fieis na Ceia é feita somente com a hóstia; a tradição da ortodoxa diz que é com ambos os elementos. A tradição romana é de um batismo por aspersão, e da ortodoxa por imersão.

 

Se um evangélico tivesse que seguir a tradição, como poderia ter certeza de qual tradição é a certa? Ele deveria seguir aquela tradição que diz que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho ou aquela que diz que ele procede apenas do Pai? Ele deveria crer na tradição que diz que o limbo existe ou naquela que nega a existência dele? Ele deveria obedecer a tradição que diz que Maria nasceu sem o pecado original ou aquela que desconhece esse dogma? Qual é a tradição certa?

 

E como podemos ter absoluta certeza de qual é a tradição certa, se ambas dizem remeter aos apóstolos e ter sido passada adiante sem alteração através dos séculos? Como poderíamos satisfatoriamente seguir a tradição romana porque Roma diz que é a certa, e ignorar a tradição ortodoxa que também diz que ela é a verdadeira? Qual tradição é essa que é tão diferente no Ocidente e no Oriente? Por que eles não seguem a mesma tradição? Por que há tantas divergências?

 

A resposta é uma só: porque a tradição oral não é nem segura e nem confiável, mas é facilmente corrompida. Todo este quadro nos mostra que pelo menos várias tradições foram corrompidas com o tempo, seja pelos romanos ou pelos ortodoxos, já que não cremos na existência de duas verdades opostas, o que cairia no relativismo secular e herético. Obviamente, a tradição foi corrompida, adulterada, transformada, modificada. Ela tomou diferentes formas, em diferentes lugares e em diferentes épocas. Ela não é nem um pouco confiável.

 

Se fosse, a tradição no Oriente seria exatamente a mesma do Ocidente. Se fosse, as igrejas romana e ortodoxa falariam a mesma língua quando o assunto é a tradição apostólica. Se fosse, ninguém estaria disputando o posto de “guardião da verdadeira tradição”. Se fosse, não haveria o Cisma. Se fosse, teríamos algo sério para refutar neste livro. Mas, infelizmente, não é.

 

A tradição oral é tão confiável quanto um telefone sem fio em uma roda de amigos, que nunca termina com o mesmo resultado de outra roda com a mesma pauta. Isso explica por que uma roda (romanos) terminou com um resultado e outra roda (ortodoxos) terminou com outro: nenhuma tradição oral é segura. Resultados diferentes é o que se deveria esperar de algo que é impossível de se conservar pela mera transmissão oral. É tão frágil quanto um telefone sem fio.

 

Em contrapartida, a Escritura dos romanos é a mesma Bíblia dos ortodoxos. As passagens são as mesmas. Os versos são os mesmos. Muda-se uma ou outra coisa insignificante em questões de traduções, mas a fonte de romanos, ortodoxos e evangélicos é a mesma na questão da Sagrada Escritura. O que está escrito em João 3:16 na Bíblia do romanista é o mesmo que está escrito na Bíblia do ortodoxo e na do evangélico. A Bíblia não foi modificada ou alterada com o tempo. Ela permanece imutável. Ela transmite exatamente a mesma mensagem que foi escrita originalmente.

 

Levando-se em consideração que a tradição oral, ao que tudo indica, não é nem confiável nem foi preservada incorruptivelmente, resta-nos a Escritura como a única regra de fé, como se segue:

 

• Existem duas formas de se chegar ao que foi ensinado originalmente por Jesus e por seus apóstolos: por aquilo que foi transmitido oralmente e por aquilo que foi escrito.

 

• Aquilo que foi transmitido oralmente se perdeu com o tempo e passou por acréscimos, mudanças e alterações ao longo dos séculos, ou seja: corrompeu-se. Igual ocorreu com a tradição oral judaica, que foi duramente repreendida por Jesus (Mt.15:3-6; Mc.7:3-9).

 

• Aquilo que foi transmitido por escrito – e que está guardado nas Sagradas Escrituras – conservou-se preservado e inalterável ao longo dos séculos até hoje.

 

• Portanto, se somente a transmissão escrita preservou-se, temos uma base sólida para o princípio da Sola Scriptura – somente as Escrituras.

 

Paz a todos vocês que estão em Cristo.

 

Por Cristo e por Seu Reino,

Lucas Banzoli.

 



[1] História Eclesiástica, Livro IV, 14:1.

[2] História Eclesiástica, Livro V, 24:16.

[3] BACCHIOCCHI, Samuelle. Roma e a controvérsia da Páscoa. Disponível em: <http://www.nossasletrasealgomais.com/2011/07/roma-e-controversia-da-pascoa.html>

[4] História Eclesiástica, Livro V, cap. XXIV.

[5] Hans van Campenhausen, Os Pais da Igreja, p. 24.

[6] Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica, Livro V, 24:9.

[7] Opere di sant' Agostino. Le Lettere, 1969, 75, 3,10-11; pag. 613.

[8] Letter 40, 3.

[9] Citações disponíveis em:
<https://lucasbanzoli.no.comunidades.net/index.php?pagina=1086893398>
<https://lucasbanzoli.no.comunidades.net/index.php?pagina=1086905743>

[10] Prefácio dos Livros de Salomão.

[11] Cidade de Deus 18, 36.

[12] História Eclesiástica, Livro III, 39:12.

[13] História Eclesiástica, Livro II, 1:2.

[14] Contra Marcião IV, 19.

[15] Sobre a carne de Cristo, 7.

[16] Stromata, 7, 16.

[17] Homília 17, sobre Lucas.

[18] De Anima, XI.

[19] Homília Sobre João 2:4.

[20] Do Pecado.

[21] In Psalm, 118.

[22] Emiss. in Orat. II de Nativ.

[23] Sermão 24, In Nativitati Domini.

[24] Sermão 25.

[25] Epistola Ad Episcopos Per Lucaniam Brities Et Siciliam Constitutos.

[26] Homília In Nativitati.

[27] O Martírio de Policarpo, 14:2.

[28] Diálogo com Trifão, 80.

[29] Diálogo com Trifão, 5.

[30] Diálogo com Trifão, 6.

[31] Against the Heathen.

[32] Teófilo a Autólico, Livro I, 7.

[33] Diálogo com os Gregos, 6.

[34] Contra as Heresias, Livro V, 31,1-2.

[35] De Anima.

[36] A cidade de Deus. Livro XXI, cap. 17 e cap. 23.

[37] Da Alma e da Ressurreição.

[38] Enchiria, ad Laurent. c. 29.

[39] De Asceticis.

[40] Contra as Heresias, Livro I, 25:6.

[41] História Eclesiástica, Livro VII, 18:4.

[42] Sobre a Idolatria, Livro III, 4.

[43] Instituições Divinas.

[44] Jerome, Lettres, Paris 1951, pag. 171.

[45] Opere di Sant'Agostino, Le lettere, 82, 5, 35; pag. 717.

[46] Concílio de Trento, Sess. IV, Decreto 2.

[47] História Eclesiástica, Livro V, 24:16.

[48] História Eclesiástica, Livro V, cap. XXIV.

[49] Opere di San Cipriano, Lettera 73, pag. 697.

[50] Opere di Sant'Agostino. Le lettere 23,2: pag. 121.

[51] Letter 93, 10.

[52] On Baptism.

[53] Tradição Apostólica, 20, 21.

[54] Bernardo Bartmann, Teologia dogmatica, vol. III, pag. 391.

[55] Petição em Favor dos Cristãos, 33.

[56] Epitome divinarum institutionum, Livro V, 20.

[57] Carta a Vicente.

[58] Do Sermão do Monte, 17.

[59] Comentário ao Evangelho de Mateus, Discurso XVII, 6.

[60] De Principiis, Livro II, 9, 7.

[61] De Anima.

[62] Epístola 190, 15; citado na Enciclopédia Católica, vol. 12, 41.

[63] Da Predestinação e dos Santos, 16.

[64] Stromata, 4.12.

[65] História Eclesiástica, Livro III, 30:1-2.

[66] Cânon III.

[67] A Vocação dos Eleitos.

[68] Dialogue, CXLI.

[69] Do Salmo 64[65],5.

[70] Comentário de Romanos 8:30.

[71] Na época de Eusébio, alguns diziam que era de Paulo, outros não sabiam de quem era, e a Igreja de Roma dizia que não era de Paulo, mas também não sabia de quem era (História Eclesiástica, Livro III, 3:5). Até hoje não se sabe ao certo de quem é a autoria.

 

 

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