MATAM O CORPO MAS NÃO A ALMA

MATAM O CORPO MAS NÃO MATAM A ALMA

 

A passagem de Mateus 10:28, em que Jesus diz:: “Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode destruir no inferno tanto a alma como o corpo”, tem sido vista pelas lentes dualistas como um apoio para a doutrina da imortalidade da alma, possivelmente como a única passagem bíblica dentre mais de 1600 em que a “alma” é mencionada com possibilidade de ser imortal. Tal interpretação, contudo, seria muito, muito estranha:

 

Se o que Jesus queria provar em Mt.10:28 era a doutrina da imortalidade da alma, por que então a continuação deste mesmo diz que a alma-psiquê é destruída junto com o corpo? Afinal, se a alma é destruída, então ela não é imortal. E, se Cristo queria provar que a alma nunca é destruída, então certamente não teria dito que ela pode perecer. Ademais, um elemento imaterial não poderia jamais sofrer a destruição que afeta o corpo e nem perecer.

 

Para entendermos o que Jesus realmente quis dizer nesta passagem, teremos que voltar rapidamente para a Parte 2, e depois analisarmos o contexto em que Cristo aplicava a palavra “alma” em seus ensinos. Voltemos a Gênesis 2:7, que fala sobre a criação do homem: “E formou o homem do pó da terra [corpo], e soprou em suas narinas o fôlego de vida [espírito], e o homem tornou-se uma alma vivente [alma](cf. Gn.2:7 – grifo meu).

 

Este é o sentido primário de alma. Sendo que o homem “tornou-se” alma, e não “obteve” uma, é fato que qualquer interpretação que induzisse que temos em nós uma alma imortal presa dentro do nosso corpo, estaria errada. Primeiramente, temos que lembrar que existem sentidos secundários de alma-psiquê. Uma vez que corpo, alma e espírito são características da mesma pessoa, então é excluído de imediato a possibilidade que existir uma pessoa dentro de si mesmo.

 

Uma vez que o homem é alma, ele não pode ter/possuir alma, pois isso altera o sentido primário do que é alma (cf. Gn.2:7). Isso, contudo, não exclui a possibilidade de haver sentidos secundários em que a palavra alma-psiquê é empregada, em um sentido que não altere o seu sentido primário. Um bom exemplo disso é psiquê [alma] no sentido de “vida”.

 

Ora, Jesus conhecia muito bem as Escrituras, e sabia muito bem que em nenhuma vez a alma-nephesh/psiquê é apresentada na Bíblia como “eterna” ou “imortal”; ao contrário, a Bíblia afirma categoricamente que a alma perece com a morte do corpo (cf. Nm.31:19; Nm.35:15,30; Js.20:3,9; Jo.20:3,28; Gn.37:21; Dt. 19:6, 11; Je.40:14,15; Jz.16:30; Nm.23:10; Ez.18:4,20; Jz.16:30; Nm.23:10; Mt.10:28; Ez.22:25,27; Jó 11:20; At.3:23).

 

Para entendermos, portanto, a aplicação de Jesus fazia nesta passagem, temos que entender que, de acordo com a criação da natureza humana em Gênesis 2:7, a vida surge a partir da implantação do fôlego de vida:

 

CORPO [PÓ] + FÔLEGO [ESPÍRITO] = VIDA

 

Assim, “alma vivente” ou “ser vivo” tem a mesma aplicação. Ambos significam a vida humana que resulta de um corpo animado pelo fôlego da vida. Constantemente a Bíblia emprega o termo psiquê no sentido de “vida”, principalmente no Novo Testamento. O sentido neotestamentário de “alma” passou também a abranger a vida eterna àqueles que aceitam a Cristo e seguem ao evangelho (cf. 1Co.15:51-54 com Mt.19:29).

 

Inúmeros exemplos podem ser citados como prova de tal fato, como podemos verificar em Mateus 16:25,26 - “Porquanto, quem quiser salvar a sua vida [psiquê] perdê-la-á; e quem perder a vida [psiquê] por minha causa achá-la-á. Pois que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma [psiquê]? Ou que dará o homem em troca da sua alma [psiquê]?”.

 

Os tradutores da maioria das versões preferiram traduzir psiquê por “vida” do que propriamente dito por “alma”, presumivelmente por crerem que ela é imortal e que não pode ser “perdida”. No v.26, “perder a psiquê” significa perdê-la no fogo do juízo que há de devorar os rebeldes (cf. Hb.10:26,27; Ap.20:9). Mas, no v.25, Cristo diz que é possível um homem “perder a psiquê” por Sua causa! Isso evidentemente criaria um dilema teológico de primeira ordem para a doutrina imortalista.

 

Perante isso, os tradutores, que não eram inspirados (mas eram crentes em uma alma imortal), resolveram o dilema e salvaram sua doutrina da imortalidade da alma traduzindo psiquê como “vida” no v.25 e como “alma” no v.26, variando a tradução de psiquê de acordo com a sua ótica, do que acreditam ser a melhor correspondência do termo e, inevitavelmente, através dos olhos de sua teologia.

 

Voltando a Mateus 10:28, quando substituímos “alma” [psiquê] por “vida” (como adequadamente pode ser), qualquer favorecimento à a doutrina da imortalidade da alma desaparece. Pior ainda do que isso, o texto em pauta nos deixa claro que os ímpios terão a própria vida [psiquê] destruída [apollumi]. Como bem disse o nosso grande teólogo Oscar Cullmann: “Se a alma é destruída, então ela não é imortal”.

 

Alguém, contudo, ainda poderia objetar questionando se “vida” poderia realmente dar sentido a “vida eterna”, obtida através da ressurreição (cf. 1Co.15:53; Jo.5:28,29), e se a Bíblia apoia tal sentido de psiquê. O Dr.Samuelle Bacchiocchi responde a esta questão em “Imortalidade ou Ressurreição?”:

 

“Cristo ampliou o sentido veterotestamentário de nephesh-alma como vida física tornando-a inclusiva da vida eterna recebida por aqueles desejosos de sacrificar a vida presente (alma) por Sua causa. Encontramos confirmação para o sentido ampliado de alma na redação de João da mesma declaração de Cristo: “Quem ama a sua vida [psychê], perde-a; mas aquele que odeia a sua vida [psychê] neste mundo, preserva-la-á para a vida eterna” (João 12:25). A correlação entre “este mundo” e “vida eterna” indica que alma-psychê é empregada para referir-se tanto à vida terrena quanto à vida eterna”.

 

O Dr. Edward Schweizer também faz uma importante observação: “Na versão joanina da declaração de Cristo é evidente que a alma não é imortal, porque doutro modo não devíamos ser instados a detestá-la. Psychê é a vida dada ao homem por Deus e que mediante a atitude do homem para com Deus recebe o seu caráter como mortal ou eterno... Daí nunca lermos da psychê aionios ou athanatos (alma eterna ou imortal), somente da psychê (alma) que é dada por Deus e mantida por Ele para zoe aionios [vida eterna]” [“TheologicalDictionary of the New Testament”]

 

Bacchiocchi ainda acrescenta o mesmo livro acima mencionado: O significado de alma como vida eterna aparece também em Lucas 21:19, onde Cristo declara: ‘É na vossa perseverança que ganhareis as vossas almas’. O contexto indica que Cristo não está falando da preservação da vida terrena, porque Ele prediz que alguns de seus seguidores serão traídos e postos à morte (v. 16). Aqui a alma-psychê é claramente entendida como vida eterna conseguida por aqueles dispostos a fazerem um compromisso total, sacrifical com Cristo. Este é o sentido ampliado que Cristo atribui à alma; um sentido que nega a noção da alma como uma entidade imaterial, imortal que coexiste com o corpo. O erro mais tolo que qualquer um pode cometer é ‘ganhar o mundo todo e perder a sua alma [psychê]’. (Mar. 8:36).”

 

Vemos, portanto, que o termo alma- psiquê no NT chegou a incluir o dom da vida eterna [ou “imortalidade”] que é recebido por aqueles sacrificam a sua vida terrena por amor a Cristo. Tal imortalidade a Bíblia nos deixa claro que obteremos a partir da ressurreição dentre os mortos (cf. 1Co.15:51-54), e é neste sentido ampliado de alma [psychê], que devemos entender a declaração de Cristo em Mateus 10:28. Matar o corpo mas não matar a alma significa matar apenas para esta vida [primeira morte], mas não ter o poder para destruir na morte eterna [segunda morte]. Deus, contudo, mata ambos.

 

Matar o corpo significa a eliminação desta vida presente, mas isso não mata a alma [vida eterna] que é recebida por ocasião da ressurreição àqueles que se sujeitaram ao Senhorio de Cristo. Os homens podem, no máximo, pôr alguma pessoa a dormir [morrer], mas nunca destruí-la em definitivo até a segunda morte, como Deus faz.

 

Em outras palavras, levando em consideração o sentido ampliado de “alma” em seus ensinos, o que Cristo estava dizendo era: “Não temais aqueles que podem trazer a vossa existência terrena (corpo) a um fim, mas não podem eliminar vossa vida eterna em Deus; mas temais o Deus que é capaz de destruir vosso ser integral eternamente”.

 

Além disso, uma outra prova de que era este o sentido da frase de Jesus, é o fato de que esta mesma passagem encontra eco no evangelho de Lucas, mas este omite a palavra “alma-psiquê”, presumivelmente para não confundir os leitores com o conceito dualista da época: “E digo-vos, amigos meus: Não temais os que matam o corpo e, depois, não têm mais que fazer. Mas eu vos mostrarei a quem deveis temer; temei aquele que, depois de matar, tem poder para lançar no inferno; sim, vos digo, a esse temei” (cf. Lc.12:4,5).

 

E é exatamente este o sentido da frase de Cristo. O que Lucas faz é clarear aos seus leitores àquilo que Jesus estava querendo dizer: Não temer aquele que pode matar apenas o corpo [primeira morte], temei antes aquele que depois de matar, tem poder para lançar no inferno [segunda morte].

 

É exatamente este o sentido da frase de Cristo. Ora, por qual motivo Lucas iria deixar de escrever exatamente as palavras que Cristo de fato disse, para ao invés disso omitir a palavra “alma-psiquê” e ir direto para o significado e aplicação da frase? A única razão lógica para isso é que ele não queria confundir os leitores dualistas da época.

 

Se essa passagem não serve de prova a favor da imortalidade, pelo menos ajuda a comprovar aquilo que já está mais do que claro até aqui: a alma também pode ser destruída.  Mais ainda do que isso, a passagem transliterada de Lucas 12:4,5 (no mesmo texto de Mateus 10:28) nos revela que a alma não vai direto para o “inferno” depois da morte do corpo.

 

Alguns imortalistas poderiam objetar levantando a questão que Cristo afirmou que “temei antes aquele que depois de matar, tem poder para lançar no inferno”. Para os imortalistas, a palavra aqui traduzida por “inferno” (que não existe nos manuscritos originais, mas é uma palavra de origem latina acrescentada na Bíblia depois de vários séculos), deveria presumivelmente tratar-se do suposto “estado intermediário” em que a alma estaria passando após a morte do corpo.

 

Este local, para eles, é o Hades (transliterado grego de “Sheol”). Não iremos voltar novamente aos conceitos básicos já mostrados sobre Sheol/Hades, até porque já fizemos isso aqui neste estudo. O que eu quero provar aqui é que Cristo nega que a alma parta de imediato a um “estado intermediário” após a morte do corpo. Isso nós descobrimos ao lermos os manuscritos originais do grego:

 

“upodeixô de umin tina phobêthête phobêthête ton meta to apokteinai tsb=exousian echonta a=exousian embalein eis tên geennan nai legô umin touton phobêthête” (cf. Lucas 12:5)

 

Percebam na palavra grifada no texto acima do original grego, que o local para onde Cristo disse que a alma partiria após a morte do corpo é ao geena. Tal local, contudo, ainda está para ser inaugurado, conforme lemos em Apocalipse 20, que mostra a inauguração deste local pela besta e pelo falso profeta após o término do milênio que sucede o fim dos tempos (Apocalipse). Em outras palavras, Hades é o “estado intermediário” [primeira morte] e geena é o estado final [segunda morte, o lago de fogo].

 

Ao dizer que “temei antes aquele que depois de matar o corpo tem poder para lançar no inferno [geena], Cristo nega em absoluto que exista alguma vida consciente em forma de “espírito descorpóreo” no Hades (estado intermediário), porque se fosse assim então o que sucederia a morte do corpo seria o lançamento da alma no Hades. Contudo, após a morte do corpo lemos que o que sucede ao lançamento no “inferno” [geena], a morte final, ou seja, não existe um estado intermediário!

 

O quadro abaixo ilustra o que acima foi dito:

 

VIDA TERRENA

ESTADO INTERMEDIÁRIO [PRIMEIRA MORTE]

ESTADO FINAL [SEGUNDA MORTE]

Morte do corpo

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A alma é lançada no inferno-geena

 

O quadro acima apenas ajuda a ilustrar o que é aqui colocado. Após a morte do corpo, a alma é lançada no geena, que ainda não foi inaugurado! Nisso fica clara a inexistência de um “estado intermediário” com consciência, pois se tal se sucedesse, então a alma partiria ao “Hades” (estado intermediário) na morte. É evidente que o Hades não é nenhuma morada de espíritos conscientes, mas sim a sepultura. Por isso, depois da morte do corpo o que vem direto é o lançamento da alma ao geena [segunda morte], que é inaugurado depois da ressurreição dos mortos.

 

As palavras de Cristo em Lucas 14:5 foram exatas e ajudam absolutamente a confirmar a interpretação correta de Mateus 10:28 em detrimento da posição dos defensores da imortalidade da alma. Assim, fica ainda mais claro o sentido de alma em Mateus 10:28, como vemos no quadro abaixo:

 

VIDA TERRENA

ESTADO FINAL [SEGUNDA MORTE]

“Não temais aqueles que podem trazer vossa existência terrena (corpo) a um fim, mas não podem eliminar vossa vida eterna em Deus”

“Temais antes aquele que é capaz de destruir vosso ser integral eternamente”

 

Vemos, portanto, que tal passagem de Mateus 10:28 é – novamente – uma arma contrária (e não “a favor”) da imortalidade da alma. Pelo contrário, ela prova a inexistência de um “estado intermediário”, e de fato nos mostra que haverá um dia em que a própria vida será destruída. E, se isso não é aniquilamento final, então não sabemos como isso poderia ser traduzido em palavras.

 

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Por: Lucas Banzoli.

Extraído do meu livro ”A LENDA DA IMORTALIDADE DA ALMA”.

 

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