DEPRAVAÇÃO TOTAL E GRAÇA PREVENIENTE

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Este artigo faz parte do meu livro: "Calvinismo ou Arminianismo - Quem está com a Razão?"
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Este é o primeiro dos cinco pontos da TULIP, e é o único em que tanto calvinistas quanto arminianos clássicos concordam de forma unânime. De fato, praticamente todas as correntes cristãs concordam que houve uma depravação decorrente do pecado. A diferença é que umas creem que essa depravação é total, de tal forma que o homem não se vê com nenhuma possibilidade de chegar a Deus por si mesmo, enquanto outras creem que essa depravação é parcial, de modo que ainda resta algo no ser humano que possa, por si mesmo, conduzi-lo a Deus.

 

Iremos analisar melhor o que calvinistas e arminianos querem dizer com “depravação total” e se este ensinamento é bíblico ou não. Em seguida, passaremos a estudar o que Deus fez para resolver este problema – o que conhecemos como “graça preveniente”.

 

 

• O que é depravação total?

 

Calvinistas e arminianos usam o termo “depravação total”, mas ambos creem que isso não significa, como alguns podem pensar, que o homem é tão depravado quanto possa ser (como o diabo, por exemplo), ou que a imagem de Deus nele tenha sido apagada. É por isso que alguns calvinistas preferem o termo “incapacidade total” do que “depravação total”. Isso significa que a depravação do homem depois da Queda foi tamanha que ele agora não pode, por suas próprias escolhas e em suas próprias forças, se voltar a Deus.

 

É por isso que a graça de Deus é tão importante e necessária, porque sem ela nós nunca poderíamos crer – pela graça sois salvos (Ef.2:8). Para os arminianos, Deus derrama sua graça sobre todos, libertando o livre-arbítrio de modo que o homem possa aceitar ou rejeitar a graça divina. Para os calvinistas, a graça divina salvífica está disponível apenas para alguns poucos, e ninguém tem escolha. O não-eleito não receberá a graça e não poderá fazer outra coisa senão continuar pecando. O eleito receberá a graça e não poderá rejeitá-la, sendo impossível deixar de crer.

 

Nas Institutas, Calvino defende a depravação total e também faz as mesmas ressalvas, sobre isso não significar que o homem não tem nada preservado. Na questão do entendimento e conhecimento das coisas deste mundo, o homem natural ainda tem algo que lhe diga o que é certo e o que é errado, uma consciência, que é um resquício da imagem de Deus que não foi totalmente retirada do homem. Ele diz que “ainda vemos alguns traços remanescentes da imagem de Deus que a todo gênero humano distinguem das demais criaturas”[1].

 

Ele também afirma:

 

“O homem é semivivo, argumentam, logo tem algo preservado. Por certo que sim. Tem ele mente capaz de entendimento, ainda que ela não penetre até à sabedoria celeste e espiritual; tem algum discernimento de honestidade, tem certa noção da divindade, ainda que não alcance ao verdadeiro conhecimento de Deus”[2]

 

O fato é que, embora o homem ainda seja a imagem de Deus e não tenha sido tão corrompido tanto quanto poderia ser, o que com ele ficou é insuficiente para chegar a Deus por si mesmo, ou para escolhê-lo por conta própria. É por isso que concordamos com os calvinistas quando eles dizem que o homem corrompido, à parte da graça, jamais poderia escolher Deus. Todos virariam as costas para ele, se não fosse pela graça, o favor imerecido do Criador.

 

Sobre a corrupção da imagem de Deus, Calvino disse:

 

“Quando Adão caiu de seu estado original, não há a mínima dúvida de que, por esta defecção, ele veio a alienar-se de Deus. Portanto, embora concordemos que a imagem de Deus não foi nele aniquilada e apagada de todo, todavia foi corrompida a tal ponto que, qualquer coisa que lhe reste, não passa de horrenda deformidade”[3]

 

A vontade do homem natural foi depravada de tal modo que agora o homem sem a graça não pode inclinar-se para o que é espiritual:

 

“Na natureza pervertida e degenerada do homem ainda brilham centelhas que mostram ser ele um animal racional e diferir dos brutos, porquanto foi dotado de inteligência, e todavia esta luz é sufocada por mui densa ignorância, de sorte a não poder defluir eficientemente. Assim, a vontade, porque é inseparável da natureza do homem, não pereceu, mas foi cingida de desejos depravados, de sorte que não pode inclinar-se para nada que seja reto”[4]

 

O Sínodo de Dort expressou bem o sentido de depravação que a Escritura nos mostra. Em seus cânones, eles definiram:

 

“Portanto, todos os homens são concebidos em pecado e nascem como filhos da ira, incapazes de qualquer ação que o salve, inclinados para o mal, mortos em pecados e escravos do pecado. Sem a graça do Espírito Santo regenerador nem desejam nem tampouco podem retornar a Deus, corrigir suas naturezas corrompidas ou ao menos estar dispostos para esta correção”[5]

 

“É verdade que há no homem depois da queda um resto de luz natural. Assim ele retém ainda alguma noção sobre Deus, sobre as coisas naturais e a diferença entre honra e desonra e pratica alguma virtude e disciplina exterior. Mas o homem está tão longe de chegar ao conhecimento salvífico de Deus e à verdadeira conversão por meio desta luz natural que ele não a usa apropriadamente nem mesmo em assuntos cotidianos”[6]

 

Sproul também nos explica o que entendemos por depravação total, diferenciando daquilo que poderia ser entendido como sendo uma “depravação completa”:

 

“A total depravação não é a depravação completa. A depravação completa significaria que todos nós somos tão pecadores como é possível ser. Sabemos que esse não é o caso. Não importa quanto cada um de nós pecou, somos capazes de pensar em pecados piores que poderíamos ter cometido. Mesmo Adolf Hitler refreou-se de matar sua mãe”[7]

 

Armínio e seus seguidores não questionaram em nada a doutrina da depravação total, como entendida por Calvino e pelos calvinistas. Iremos conferir mais adiante algumas citações que comprovam isso, mas, antes, será necessário analisarmos se este ensinamento é mesmo bíblico.

 

 

• Textos Bíblicos

 

Por toda a Bíblia vemos exemplos claros de que a mente do homem natural é depravada. Desde o Gênesis vemos Deus dizendo que “a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e toda a imaginação dos pensamentos de seu coração é só má continuamente” (Gn.6:5). Isaías nos diz que “todos nós temos andado desgarrados como ovelhas; temo-nos desviado cada um para o seu caminho” (Is.53:6). Paulo acrescentou que eles “tem a mente depravada e são reprovados na fé” (2Tm.3:8).

 

Então, que o pecado trouxe depravação à natureza humana é um fato indiscutível. A questão que fica é: até que ponto essa depravação chegou? Paulo nos responde a esta questão dizendo que a mente do homem natural é corrompida de tal forma que torna o homem desqualificado para qualquer boa obra:

 

“De fato, tanto a mente como a consciência deles estão corrompidas. Eles afirmam que conhecem a Deus, mas por seus atos o negam; são detestáveis, desobedientes e desqualificados para qualquer boa obra” (Tito 2:15-16)

 

Se o homem caído não pode fazer qualquer boa obra, então logicamente ele não pode iniciar a salvação, ou chegar a Deus por si mesmo. É uma incapacidade total, como definimos a depravação total. Paulo é ainda mais enfático quando diz que a depravação do homem é tamanha que não há ninguém que busque a Deus, deixando nítida a impossibilidade do homem em buscar o Senhor à parte da graça divina e regeneradora:

 

“Como está escrito: Não há justo, nem sequer um. Não há quem entenda; não há quem busque a Deus. Todos se extraviaram; juntamente se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há nem um só. A sua garganta é um sepulcro aberto; com as suas línguas tratam enganosamente; peçonha de áspides está debaixo dos seus lábios; a sua boca está cheia de maldição e amargura. Os seus pés são ligeiros para derramar sangue. Nos seus caminhos há destruição e miséria; e não conheceram o caminho da paz. Não há temor de Deus diante dos seus olhos” (Romanos 3:10-18)

 

Jesus também relata a incapacidade total do homem em chegar a Deus por si mesmo. Ele disse que é impossível que um homem mau diga coisas boas (Mt.12:34), referindo-se às coisas espirituais, porque “a boca fala do que está cheio o coração” (Mt.12:34). Ele também disse que “ninguém pode vir a mim, a não ser que isto lhe seja dado pelo Pai” (Jo.6:65), deixando claro que é Deus que dá o primeiro passo. Comentando este texto, Sproul diz:

 

“O significado das palavras de Jesus é claro. Nenhum ser humano tem a possibilidade de poder vir a Cristo a menos que aconteça alguma coisa que torne possível que ele venha (...) O homem não tem capacidade em si mesmo e de si mesmo para vir a Cristo. Deus precisa fazer alguma coisa antes (...) Não está dentro da capacidade natural do homem decaído vir a Cristo por si próprio, sem algum tipo de assistência divina”[8]

 

É em função da depravação total que a Bíblia retrata o homem caído como espiritualmente morto. Foi quando nós estávamos “mortos em pecados” que “Deus nos vivificou juntamente com Cristo” (Cl.2:13). Deus, por sua misericórdia, “deu-nos vida juntamente com Cristo, quando ainda estávamos mortos em transgressões” (Ef.2:5). Essa morte espiritual obviamente se refere às coisas espirituais. Sendo assim, é lógico que o homem sem a graça não pode fazer nada que envolva sua própria salvação.

 

Paulo também disse que “o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque para ele são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente” (1Co.2:14). É necessário que Deus derrame sua graça sobre o homem, pois ele, naturalmente, não pode entender nem discernir as coisas espirituais. É por isso que nós só o amamos “porque ele nos amou primeiro” (1Jo.4:19). Quando Lídia atendeu à mensagem de Paulo, é nos dito que o Senhor teve que abrir o coração dela:

 

“Uma das que ouviam era uma mulher temente a Deus chamada Lídia, vendedora de tecido de púrpura, da cidade de Tiatira. O Senhor abriu seu coração para atender à mensagem de Paulo” (Atos 16:14)

 

Ao natural, ninguém pode entender, discernir ou atender a mensagem do evangelho. É necessário que Deus abra o coração das pessoas através da graça preveniente para que elas possam entender, discernir e crer. À vista de tudo isso, se tivermos em mente o que realmente os calvinistas querem dizer com “depravação total”, no sentido de incapacidade total, tal ensino é totalmente bíblico[9]. Iremos analisar agora se Armínio e os primeiros remonstrantes mantiveram essa crença ou se a rejeitaram, como alguns calvinistas alegam.

 

 

• Arminianos clássicos creem na depravação total?

 

Embora alguns calvinistas queiram se colocar como os únicos defensores da depravação total e acusem os arminianos de semipelagianismo (acusação essa que já foi refutada no capítulo 1), Armínio e os primeiros remonstrantes creram na depravação total e na plena necessidade da graça de uma forma tão incisiva e enfática quanto qualquer calvinista de seus tempos.

 

Armínio ensinou que “o livre arbítrio não tem a capacidade de fazer ou aperfeiçoar qualquer bem espiritual genuíno sem a graça”[10]. Ele também disse que, sem a graça, “o livre-arbítrio do homem em direção ao Verdadeiro Bem não está apenas ferido, mutilado, débil, inclinado, e enfraquecido; mas também aprisionado, destruído, e perdido: E seus poderes não estão apenas debilitados e inúteis a menos que eles sejam assistidos pela graça, mas não têm poder nenhum exceto se excitados pela graça divina”[11].

 

Sobre o estado caído do homem, ele disse:

 

“Em seu estado pecaminoso e caído, o homem não é capaz de e por si mesmo, quer seja pensar, querer ou fazer o que é, de fato, bom; mas é necessário que seja regenerado e renovado em seu intelecto, afeições ou vontade e em todas as suas atribuições, por Deus em Cristo através do Espírito Santo, para que seja capaz de corretamente compreender, estimar, considerar, desejar e realizar o que quer que seja verdadeiramente bom. Quando ele é feito um participante dessa regeneração ou renovação, eu considero que, uma vez que ele é liberto do pecado, ele é capaz de pensar, desejar e fazer o que é bom, mas, entretanto, não sem a contínua ajuda da graça divina”[12]

 

Ele várias vezes ressaltou que sua crença na depravação total do homem era a mesma que todo calvinista crê, e da mesma forma a total necessidade da graça. Sua única divergência sobre isso era quanto ao modus operandi desta graça, se ela é irresistível ou não:

 

“Eu atribuo à graça o começo, a continuidade e a consumação de todo bem, e a tal ponto eu estendo sua influência, que um homem, embora regenerado, de forma nenhuma pode conceber, desejar, nem fazer qualquer bem, nem resistir a qualquer tentação do mal, sem esta graça preveniente e estimulante, seguinte e cooperante. Desta declaração claramente parecerá que de maneira nenhuma eu faço injustiça à graça, atribuindo, como é dito de mim, demais ao livre-arbítrio do homem. Pois toda a controvérsia se reduz à solução desta questão, ‘a graça e Deus é uma certa força irresistível’? Isto é, a controvérsia não diz respeito àquelas ações ou operações que possam ser atribuídas à graça (pois eu reconheço e ensino muitas destas ações ou operações quanto qualquer um), mas ela diz respeito unicamente ao modo de operação, se ela é irresistível ou não. Em se tratando dessa questão, creio, de acordo com as Escrituras, que muitas pessoas resistem ao Espírito Santo  rejeitam a graça que é oferecida”[13]

 

Ele também disse:

 

“Todos os homens ‘são, por natureza, filhos da desobediência’ (Ef 2.3), merecedores da condenação e da morte temporal e eterna; eles são também desprovidos da retidão e santidade originais (Rm 5.12,18,19). Com estas maldades eles permaneceriam oprimidos para sempre, a menos que fossem libertos por Cristo Jesus; a quem seja a glória para todo o sempre”[14]

 

Diante destas citações de Armínio, até mesmo o calvinista mais fanático há de reconhecer que ele era um pregador da depravação total e da completa necessidade da graça. Cunningham, por exemplo, admitiu que “as declarações do próprio Armínio, em relação à depravação natural do homem, até o ponto que temos sido informados, são completas e satisfatórias”[15]. Sproul também confessou que “as maneiras de se expressar de Agostinho, Martinho Lutero ou de João Calvino dificilmente são mais fortes do que as de Armínio”[16].

 

John Mark Hicks foi além e disse que “o mais meticuloso advogado da depravação total mal poderá aventurar-se a ir mais longe que Armínio no que diz respeito ao homem não regenerado”[17]. Para William Gene Witt, “Armínio detém uma excelentíssima teologia da graça. Ele insiste enfaticamente que a graça é imerecida por ser obtida por intermédio da redenção de Deus em Cristo, não por intermédio de esforço humano”[18]. Ele também disse:

 

“Independente do que seja verdadeiro acerca dos sucessores da teologia arminiana, ele mesmo mantinha a doutrina da escravidão da vontade, que é, em todos os aspectos, tão incisiva quanto qualquer coisa em Lutero ou em Calvino”[19]

 

Roger Olson reiterou que “Armínio não poderia ter deixado sua crença mais clara de que os seres humanos são totalmente incapacitados e totalmente dependentes da graça pára sua salvação”[20]. Ele também disse que “Armínio afirmou a necessidade de graça auxiliadora (preveniente) sobrenatural para liberar a pessoa caída antes que ele ou ela pudesse responder ao evangelho. Independente disso (e não graça comum, conforme Holifield diz), todo filho de Adão automaticamente rejeitaria o evangelho”[21].

 

Howard Slaatte discorreu sobre essa convicção de Armínio nas seguintes palavras:

 

“Logo, o fator responsivo [na pessoa humana, de acordo com Armínio] pode ser descrito como inspirado na graça, qualificado na graça e liberdade orientada pela graça. O pecador pode pecar livremente ao render-se às tentações e coações malignas dentro de sua própria existência, mas ele pode responder à graça livremente ao passo que a graça lhe toca por intermédio da Palavra iluminada pelo Espírito”[22]

 

A crença firme de Armínio na depravação total se refletiu na Confissão Arminiana de 1621, que professa:

 

“O homem, portanto, não tem a fé salvífica de si mesmo, e nem é regenerado ou convertido pelo poder do seu livre-arbítrio. Visto que no estado de pecado ele de si mesmo, ou por si mesmo, não consegue pensar, muito menos querer ou fazer algo de bom para ser salvo (a qual primeiramente é a conversão e a fé salvífica). É necessário que Deus em Cristo, pela palavra do evangelho, junto com o poder regenerador do Espírito Santo, renove totalmente o homem – a saber, no intelecto, nas emoções, na vontade, e em todas as suas forças – para que ele seja capaz de entender, meditar, querer e consumar essas coisas que são salutarmente boas”[23]

 

Os remonstrantes também definiram que “o homem não poderia obter a fé salvífica de si mesmo ou pela força de seu próprio livre-arbítrio, mas se encontrava destituído da graça de Deus, através de Cristo, para ser renovado no pensamento e na vontade (Jo 15:5)”[24]. À vista disso, até mesmo os calvinistas Robert Peterson e Michael Williams admitiram que “arminianos e calvinistas igualmente acreditam na depravação total; em virtude da queda, todo aspecto da natureza humana está contaminado pelo pecado”[25].

 

Wesley também conservou e enfatizou a realidade da depravação do homem e da total necessidade da graça preveniente. Ele disse que “o homem, em seu estado natural, está totalmente corrompido, por todas as faculdades de sua alma: corrompido em seu entendimento, sua vontade, suas afeições, sua consciência, e sua memória”[26]. Ele também afirmou categoricamente que negar a depravação total é ser um infiel e não-cristão:

 

“Aqui está o chibolete: é o homem, por natureza, cheio de toda forma de mal? Ele está vazio de todo o bem? Ele é totalmente caído? Sua alma está totalmente corrompida? Ou, para voltar ao texto, é ‘toda a imaginação dos pensamentos de seu coração só má continuamente?’. Admita isso e você é, de longe, cristão. Negue isso, e você não é nada mais que um infiel”[27]

 

Ele também enfatiza:

 

“Pela graça de Deus, conheça a si mesmo. Conheça e sinta que você foi formado em iniqüidade, e em pecado sua mãe o concebeu; e que você mesmo tem estado acumulando pecado sobre pecado, desde que você pôde discernir o bem do mal. Somos culpados de morte eterna; e sem a esperança de poder salvarmos a nós mesmos”[28]

 

Diante destas declarações de Wesley, até mesmo Spurgeon disse que “Wesley não somente pregava a justificação pela fé muito claramente, mas da mesma forma a total ruína de nossa raça; e, o que quer que alguns de seus seguidores possam pregar, ele próprio ensinava a incapacidade da criatura”[29]. Infelizmente, com o passar dos séculos alguns arminianos distorceram a teologia de Armínio e alguns chegaram a negar a depravação total, como Philip van Limborch e Charles Finney. Mesmo assim, estes são exceções. Arminianos clássicos creem até hoje que o homem é totalmente depravado.

 

Thomas Summers afirmou que, “sem a graça, a vontade é má, pois a natureza do homem é tão má que ele, de si mesmo, não pode escolher aquilo que é certo”[30]. Richard Waton acrescenta que “o verdadeiro arminiano, tão plenamente quanto o calvinista, admite a doutrina da depravação total da natureza humana em consequencia da queda de nossos primeiros pais”[31]. O teólogo metodista Thomas Oden também disse:

 

“A graça opera adiante de nós para nos atrair em direção à fé, para iniciar sua obra em nós. Até mesmo a primeira e frágil intuição da convicção do pecado, a primeira insinuação de nossa necessidade de Deus, é a obra da graça preparadora e antecedente, que gradualmente nos leva ao desejo de agradar a Deus”[32]

 

Roger Olson é outro que mantém o ponto de vista arminiano clássico sobre a depravação total. Ele diz que, “contrariando a ideia popular sobre o arminianismo (sobretudo entre os calvinistas), nem Armínio e nem os remonstrantes negaram a depravação total, mas afirmaram-na”[33]. Para ele, “os humanos estão mortos em transgressões e pecados até que a graça preveniente de Deus os desperte e os habilite a exercer sua boa vontade para com Deus em arrependimento e fé”[34].

 

Ele declara também que “o arminianismo ensina que todos os seres humanos nascem moral e espiritualmente depravados e incapazes de fazer qualquer coisa boa ou digna aos olhos de Deus, sem infusão especial da graça divina para superar as inclinações do pecado original”[35], e explica que “isso significa que toda parte da pessoa humana (exceto Jesus Cristo, claro) está infectada e tão afetada pelo pecado que a pessoa é completamente incapaz de agradar a Deus antes de ser regenerada (nascida de novo) pelo Espírito de Deus”[36].

 

Em suma, o arminiano clássico concorda plenamente com Spurgeon quando ele disse que “Deus busca o homem primeiro, e não ao contrário; e se alguém o busca hoje é porque Ele o buscou primeiro. Se alguém o deseja, saiba que Ele o desejou primeiro; sua busca e desejos sinceros não provêm da sua salvação, mas dos efeitos da graça previamente concedida a você”[37]; e que “a razão pela qual alguém é salvo é Graça, Graça, Graça![38].

 

O resumo de tudo isso é que a depravação total, embora seja negada por alguns arminianos que se desviaram da teologia de Armínio, é crida por todos os arminianos clássicos que mantém a crença ortodoxa de que o homem é totalmente depravado e incapaz de alcançar a Deus por seus próprios meios. Por isso, “o fundamento essencial do pensamento do arminianismo clássico é a graça preveniente. Toda a salvação é absoluta e inteiramente da graça de Deus”[39]. É isso o que passaremos a estudar agora.

 

  

• Qual é a solução para a depravação do homem?

 

Como já vimos, o homem é totalmente depravado, no sentido de ser completamente incapaz de iniciar um relacionamento com Deus para a sua própria salvação. Por isso, é Deus quem toma a iniciativa e libera a graça, que por sua vez é a que restaura o livre-arbítrio espiritual do ser humano de modo que ele agora possa aceitar ou rejeitar a graça divina, do mesmo modo que Adão teve essa opção no Jardim do Éden. É por isso que nós somos salvos somente pela graça – porque se não fosse por ela nós nunca poderíamos fazer o mesmo por nós mesmos.

 

Essa graça é conhecida como “preveniente”, no sentido de “prévia”, a que vem antes. Não é que seja um outro “tipo” de graça divina, mas é um termo usado apenas para diferenciar da graça cooperante. A graça preveniente é aquela graça que atua antes do indivíduo se converter, ao passo em que a graça cooperante é a que coopera ao longo de todo o curso da caminhada cristã. Calvinistas e arminianos creem na graça preveniente, com a diferença de que os calvinistas creem que essa graça é limitada (somente para alguns) e que é irresistível.

 

A diferença na concepção sobre a graça preveniente na visão calvinista e arminiana segue conforme o quadro abaixo:

 

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Roger Olson resume as diferenças na concepção de graça preveniente entre calvinistas e arminianos dizendo:

 

“A graça preveniente é simplesmente a graça de Deus convincente, convidativa, iluminadora e capacitadora, que antecede a conversão e torna o arrependimento e a fé possíveis. Os calvinistas interpretam-na como irresistível e eficaz; a pessoa na qual esta graça opera irá se arrepender e crer para salvação. Os arminianos interpretam-na como resistível; as pessoas sempre são capazes de resistir à graça de Deus, conforme a Escritura nos adverte (At 7.51)”[40]

 

O debate sobre quem está com a razão quanto ao modus operandi da graça preveniente será abordado no capítulo seguinte. Por enquanto, cabe explicarmos melhor o que os arminianos entendem por “graça preveniente”. Armínio disse que “nenhum homem crê em Cristo exceto o que foi previamente inclinado e preparado pela graça preventiva para receber a vida eterna, sobre esta condição na qual Deus deseja concedê-la”[41].

 

Wiley nos elucida o que os arminianos entendem pelo termo:

 

“A graça preveniente, conforme o termo implica, é aquela graça que ‘antecede’ ou prepara a alma para a entrada no estado inicial da salvação. É a graça preparatória do Espírito Santo exercida no homem abandonado em pecado. No que diz respeito à culpa, pode ser considerada misericórdia; em relação à impotência, é o poder capacitador. Pode ser definida, portanto, como a manifestação da influência divina que precede a vida regenerada plena”[42]

 

Howard Marshall explica a finalidade desta graça preveniente, que é “colocar o homem em uma posição na qual ele possa dizer ‘sim’ ou ‘não’ (algo que o homem não poderia fazer antes de Deus tê-lo chamado; até então ele estava em uma contínua posição de ‘não’)”[43]. É por isso que Witt diz que “a capacidade de crer não pertence ao natural, mas o verdadeiro ato de crer pertence à graça, e ninguém pode, real e verdadeiramente, crer sem a graça preveniente e acompanhante”[44].

 

Olson nos diz que ela é “uma infusão especial de graça renovadora, regeneradora e sobrenatural é obrigatória até mesmo para o primeiro exercício de uma boa vontade para com Deus”[45]. Ele também afirma que “qualquer um que demonstrar o primeiro indício ou inclinação de boa vontade para com Deus já está sob influência pela graça. A graça é a causa primeira do livre-arbítrio genuíno como liberação da escravidão ao pecado, e a graça é a fonte de tudo o que é bom”[46].

 

Parafraseando-o, essa graça “desperta o prisioneiro que repousa impotente no calabouço da escuridão do pecado e quebra suas correntes para que ele possa se levantar e seguir Cristo”[47]. Ela “cura a ferida moral do pecado e capacita os humanos, que, caso contrário, estariam na escravidão da vontade ao pecado, a responder livremente à mensagem do evangelho”[48]. Ele também reitera que “a graça preveniente não interfere na liberdade da vontade. Ela não verga vontade ou torna certa a resposta da verdade. Apenas capacita a vontade a fazer escolha livre quer seja para cooperar quer seja para resistir à graça”[49].

 

É neste sentido que os arminianos creem em uma regeneração parcial que precede a fé, pois somente restaurando o livre-arbítrio e o tornando apto para aceitar ou rejeitar a graça divina é que o homem poderia livremente dizer “sim”. Logicamente, isso difere da regeneração completa, que só acontece quando o indivíduo decide crer e diz “sim” à graça, sendo-lhe infundida a fé como um dom de Deus e o Espírito Santo como o penhor da nossa salvação. Sem a fé e sem o Espírito Santo transformando e santificando os corações, ninguém é realmente “regenerado”, no sentido completo da palavra.

 

O livre-arbítrio restaurado por si só não é uma regeneração completa, que envolve santificação e fé, mas é meramente uma restauração do ser humano a uma condição onde ele agora pode aceitar a graça. Por isso o termo “regeneração parcial”, que Olson explica como sendo um “estágio intermediário que não é nem ‘não-regenerado’ nem ‘regenerado’, mas talvez ‘pós-não-regenerado’ e ‘pré-regenerado’. A alma do pecador está sendo resgatada, mas o pecador é capaz de resistir e recursar a graça preveniente de Deus ao negar o evangelho”[50].

 

Ele também explica:

 

“Os arminianos e outros sinergistas realmente acreditam que a graça preveniente restaura vida à pessoa morta em delitos e pecados. Todavia, ela não os força a aceitarem a misericórdia de Deus para a salvação, que exige arrependimento e fé (conversão). Assim, na teologia arminiana, uma regeneração parcial realmente precede a conversão, mas ela não é uma regeneração completa. É um despertamento e uma capacitação, mas não uma força irresistível”[51]

 

Sobre a regeneração plena, ele diz:

 

“As pessoas que respondem positivamente à graça de Deus ao não resistir a ela (que envolve arrependimento e confiança em Cristo) são nascidas de novo pelo Espírito de Deus (que é a regeneração plena), perdoadas de todos os seus pecados e consideradas por Deus como retas em virtude da morte expiatória de Cristo por elas. Nada disto está fundamentado em qualquer mérito humano; é uma dádiva perfeita, não imposta, mas livremente recebida”[52]

 

O que torna um receptor da graça preveniente (regeneração parcial) em um salvo (regeneração completa) é o arrependimento e fé. Olson diz que “a ponte entre a regeneração parcial pela graça preveniente e a plena regeneração pelo Espírito Santo é a conversão, que inclui arrependimento e fé”[53]. Logicamente, os calvinistas, que também creem na graça preveniente, rejeitarão o modus operandi desta graça, alegando que ela é irresistível, que atua somente nos eleitos e que o regenera plenamente antes de ele crer. Se isso é verdade ou não, veremos no capítulo seguinte.

 

 

• Últimas considerações

 

Há menos discussão do que se pensa quando o assunto é a depravação do homem, porque este é provavelmente o único tema em que os arminianos concordam com os calvinistas. Ambos creem que o ser humano caído é depravado a tal ponto que ele não pode, de jeito nenhum, iniciar sua própria salvação, dar um passo em direção a Deus ou fazer qualquer coisa à parte da graça. Por isso, ambos creem na salvação unicamente pela graça através unicamente da fé, pois é somente por essa graça divina que somos salvos.

 

A graça, tanto para o calvinista quanto para o arminiano, é completamente necessária e imprescindível. Ela é primordial e indispensável, pois é por meio dela que Deus estende a salvação a um homem caído, degenerado e morto em seus próprios pecados. Essa graça que antecede a conversão é conhecida como “preveniente”. Spurgeon corretamente disse que “a sua busca e desejos sinceros não provêm da sua salvação, mas dos efeitos da graça previamente concedida a você”[54].

 

Paz a todos vocês que estão em Cristo.

 

Por Cristo e por Seu Reino,

Lucas Banzoli.

 



[1] Institutas,2.2.17.

[2] Institutas,2.5.19.

[3] Institutas,1.15.4.

[4] Institutas,2.2.12.

[5] Cânones de Dort, III, IV:3.

[6] Cânones de Dort, III, IV:4.

[7] SPROUL, Robert Charles. Eleitos de Deus. Editora Cultura Cristã: 1998, p. 76.

[8] SPROUL, Robert Charles. Eleitos de Deus. Editora Cultura Cristã: 1998, p. 50.

[9] Os textos acima são apenas um pequeno resumo da depravação total na Bíblia. Não entrarei mais a fundo neste ponto porque ele não é alvo de disputa entre calvinistas e arminianos, não tendo, portanto, necessidade de se aprofundar mais nisso. Para quem quiser conferir uma abordagem bíblica mais aprofundada sobre a depravação total, recomendo a leitura das próprias Institutas de Calvino, no volume II, a partir do capítulo II.

[10] Arminius, Works (Graça e livre arbítrio), v.2. Disponível em: <http://www.arminianismo.com/index.php/categorias/obras/livros/127-james-arminius-as-obras-de-james-arminius-vol2-/172-4-graca-e-livre-arbitrio>

[11] Works of Arminius, vol. 2, p. 192.

[12] ARMINIUS, “A Declaration of the Sentiments of Arminius”, Works, v. 1. p. 659-660.

[13] ARMINIUS, “A Declaration of Sentiments”, Works, v. 1, p. 664.

[14] ARMINIUS, “Public Disputations”, Works, v. 2, p. 156-157.

[15] Cunningham, Theology, vol. 2, p. 389.

[16] Sproul, Sola Gratia, p. 138.

[17] HICKS, John Mark. The Theology of Grace in the Thought of Jacobus Arminius and Philip van Limborch: A Study in the Development of Seventeenth-Century Dutch Arminianism. Filadélfia, Westminster Theological Seminary, 1985. Dissertação de Doutorado. p. 34.

[18] WITT, William Gene. Creation, Redemption and Grace in the Theology of Jacobus Arminius. Indiana, University of Notre Dame, 1993. Dissertação de Doutorado. p. 215-49.

[19] WITT, William Gene. Creation, Redemption and Grace in the Theology of Jacobus Arminius. Indiana: University of Notre Dame, 1993, p. 479.

[20] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 184.

[21] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 53.

[22] SLAATTE, Howard A. The Arminian Arm of Theology. Washington, D. C.: University Press of America, 1979, p. 19, 23.

[23] Confissão Arminiana de 1621 - Capítulo XVII.

[24] The Remonstrance, in HARRISON, Beginnings of Arminianism,p. 150-151.

[25] PETERSON, Robert A.; WILLIAMS, Michael D. Why I Am Not an Arminian. Downers Grove, Iii.: Intervarsity Press, 2004. p. 163.

[26] John Wesley, citado em Arthur S. Wood, “The Contribution of John Wesley to the Theology of Grace,” em Pinnock, ed., Grace Unlimited, p. 213.

[27] WESLEY, John. “On Original Sin”, in John Wesley, Ed. Stephen Rost, abrev. Ed. Nasville: Thomas Nelson, 1989, p. 34.

[28] John Wesley, A Compend of Wesley’s Theology, ed. Robert W. Burtner e Robert E. Chiles (Nashville: Abingdon Press, 1954), p. 127.

[29] SPURGEON, Charles H. Two Wesleys, p. 9.

[30] SUMMERS, Thomas O. Systematic Theology. Nashville: Publishing House of the Methodist Episcopal Chruch, South, 1888, v. 1, p. 64.

[31] WATSON, Richard. Theological Institutes. New York: Lane e Scott, 1851, v. 2, p. 48.

[32] ODEN, Thomas C. John Wesley’s Scriptural Christianity. Grand Rapids: Zondevan, 1994, p. 246.

[33] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 42.

[34] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 206.

[35] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 42.

[36] OLSON, Roger. Contra o Calvinismo. Editora Reflexão: 2013, p. 67.

[37] SPURGEON, Charles H, Sermão sobre: “A Soberana Graça de Deus e a Responsabilidade do Homem”.

[38] SPURGEON, Charles H, Sermão sobre: “A Soberana Graça de Deus e a Responsabilidade do Homem”.

[39] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 205.

[40] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 45.

[41] ARMINIUS, “Certain Articles to Be Diligently Examined and Weighed”, Works, v. 2, p. 724.

[42] WILEY, H. Orton. Christian Theology. Kansas City, Mo.: Beacon Hill, 1941. v. 2, p. 346.

[43] MARSHALL, I. Howard. “Predestination in the New Testament”, in Grace Unlimited, Ed. Clark Pinnock, Minneapolis: Bethany Fellowhip, 1975, p. 140.

[44] WITT, William Gene. Creation, Redemptin and Grace in the Theology of Jacobus Arminius. Indiana, University of Notre Dame, 1993. Tese de Doutorado, p. 329-630.

[45] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 54.

[46] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 209.

[47] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 209.

[48] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 208.

[49] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 46.

[50] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 213.

[51] OLSON, Roger. Contra o Calvinismo. Editora Reflexão: 2013, p. 267.

[52] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 47.

[53] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 46.

[54] SPURGEON, Charles H, Sermão sobre: “A Soberana Graça de Deus e a Responsabilidade do Homem”.

 

 

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